Dor e sofrimento

Peço que imaginem a seguinte situação. Um pequeno, mas vigoroso riacho corre fluido desenhando seu trajeto por entre a paisagem. De repente algo acontece que interrompe o fluxo da água.

Peço que imaginem a seguinte situação. Um pequeno, mas vigoroso riacho corre fluido desenhando seu trajeto por entre a paisagem. De repente algo acontece que interrompe o fluxo da água. Pode ser o surgimento de algum tipo de barreira: a queda de uma árvore, o desmoronamento de grande quantidade de terra, ou a ação inconsequente e inadvertida do ser humano. O riacho tem seu curso interrompido abruptamente. A água que antes fluía cristalina agora encontra dificuldade para continuar seu antigo trajeto. Por algum tempo permanece represada, parada, estagnada. Até que, sutilmente, começa a construir um caminho alternativo, se reinventa para retomar seu fluxo. Desenha com calma e paciência uma nova rota. Água é mestre em encontrar caminhos alternativos. Quem nunca se surpreendeu ao ser informado que a infiltração da cozinha na verdade se originou em outro cômodo da casa?

Pois bem, a partir de minha perspectiva, gostaria de utilizar esta imagem para falar sobre a dor e como a entendo.

É impossível passar pela vida sem experimentar dor, seja ela física ou psíquica. Ela é real, mesmo que sua origem seja subjetiva. Podemos senti-la palpável, quase concreta. Ela abruptamente interrompe ou pelo menos atrapalha o fluxo e o fluir de nossa vida. Algo acontece que me machuca, espanta ou surpreende e sinto que não tenho repertório para lidar com tamanho impacto. Assim como nosso riacho que tem seu correr interrompido a dor surge e se interpõe em minha trajetória de vida.

A intensidade de sua sensação dependerá de alguns fatores como a extensão e o significado que atribuo ao ocorrido. Quem realiza esta definição não é quem está de fora e acompanha ou auxilia. É importante que tenhamos sempre a perspectiva de que é o próprio sujeito que sente a dor quem definirá sua intensidade. Algumas dores são tão intensas que de tão doídos ficamos meio doidos, literalmente dissociamos. Este é um dos mecanismo de defesa utilizados pelo ego para tentar lidar com a intensidade emocional que foi mobilizada. As defesas podem ser variadas indo desde o estupor, negação, racionalização até reações incontroladas de raiva e autoagressão (buscando na dor física distração para a dor psíquica).

Mas, da mesma maneira que a dor é real e pode ser bastante intensa, ela também é passageira. Cada dor sempre tem um tempo de duração. Algo acontece, a dor aparece, cumpre seu papel e vai gradativamente sendo dissipada. É o riacho de nossa imagem retomando seu fluir através de novas rotas. Depois de estagnar ele retoma a fluidez com outros caminhos e perspectivas.

Alguns poderão contra argumentar que uma pessoa pode sim carregar uma dor pela vida inteira e nunca conseguir superar e recobrar seu fluir, ficando para sempre marcado pelo acontecimento traumático.

Concordo, mas uma redefinição se faz necessária. A dor não está mais presente neste momento e sim o sofrimento. A dor real, não metabolizada se transforma em sofrimento imaginário. Explico: imaginário porque o fato e o acontecido doloroso já não se fazem mais presentes e o que se processa é o pensar, relembrar, ressentir, reviver mentalmente a dor original. Um sofrimento pode ser carregado por toda uma vida gerando os mais diversos prejuízos e dissabores para quem o vivencia.

O sofrimento impede o riacho de seguir com o caminho de suas águas. Ele pode se tornar uma represa de ressentimentos ou até mesmo secar fazendo-se sentir sua aridez nas relações que antes nutria.

O sofrimento não atualiza os movimentos da vida e seus desdobramentos. Permanece como uma ancora no passado, leal ao acontecido, não se sentindo capaz ou até mesmo merecedor de continuar e perceber, muitas vezes, que o contexto mudou.

Portanto, a maneira como lidamos com a dor é extremamente importante. A dor precisa ser sentida, acolhida e vivenciada. Ela nos conecta com a importância do cuidado. Lembro-me de um workshop ministrado em Belo Horizonte pela psicóloga e terapeuta Solange Rosset (numa mistura de suas palavras com minhas memórias) em que dizia, carinhosamente, que alguns momentos de nossas vidas merecem ser encarados com uma boa xícara de chá, roupão macio e chinelos confortáveis.

Preciso reconhecer a dor e agir com ela.

Marcas e cicatrizes, todos nós os carregamos pela vida, mas antes que nos acorrentem aos traumas e dificuldades passados, nos lembram que sobrevivemos e continuamos vivendo e aprendendo no presente.

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